sábado, 9 de fevereiro de 2013

Bate forte o tambor por uma pedagogia do sopapo

Zero Hora 09 de fevereiro de 2013 




BATE FORTE O TAMBOR

Por uma pedagogia do sopapo

Dedicado a Mestre Baptista
“Instrumento musical de aproximadamente 110cm de altura e 60cm de diâmetro, dono de um grave 
absoluto, esculpido originalmente com tronco de árvore e couro animal, cavalo e gado preferencialmente.
 Elo de ancestralidade com a Mãe África, ritual de permanência, objeto de eternidade: sopapo, enquanto 
instrumento profano, exige apenas mãos para ser tocado. Enquanto instrumento sagrado, ligado ao batuque
 gaúcho, exige apenas devoção das mesmas mãos que faziam a carne de sal e ainda hoje fazem o carnaval.”

Texto transcrito do documentário O Grande Tambor (Coletivo Catarse/Iphan; 2010).

Dança de Negros, aquarela de Rudolph Wendroth, mercenário e artista plástico alemão que andou pelo RS
 no século 19, é o registro visual mais antigo que se tem da presença do tambor sopapo no estado do Rio 
Grande do Sul. A pintura confirma a presença do tambor ancestral gaúcho, como também fizeram Nicolaus 
Dreys, Carl Seidler e outros viajantes europeus no século 19. A aquarela ilustrou o Projeto Cabobu, que teve
duas edições no ano 2000 na cidade de Pelotas. Idealizado por Giba Giba junto ao Governo do Estado do RS,
 consistiu, dentre outras coisas, na criação de uma oficina no Colégio Pelotense, para a construção de 40 
sopapos sob orientação de Neives Meireles Baptista, o Mestre Baptista (1936 – 2012), carnavalesco e mestre
de bateria que se tornou referência na confecção contemporânea do atabaque rei.

Por sua vez, o Novo Dicionário Banto do Brasil, escrito por Nei Lopes (Editora Pallas, 2003), relacionava 
a provável origem do termo “sopapo” ao tambor recriado nas charqueadas do RS após a diáspora africana: 
“Grande tambor, popularizado no RS nos anos 70, pelo músico negro Giba Giba. Provavelmente de yakupapa
, tambor dos ganguelas (Redinha, 1984).” Referência ainda mais antiga, o Glosario de Afronegrismos Uruguayos
 de Alberto Britos Serrat (Ediciones Mundo Afro/El Galeón, 1999) registrava a presença no século 18 de um 
quarto tambor grave junto à cuerda, chamado de sopipa. Mais recentemente, Arthur de Faria, na História 
da Música de Porto Alegre, referindo-se ao final do século 19, relata: “Nas imediações onde hoje é a Rua Lima
 e Silva, havia o Candombe da Mãe Rita (...), como o ritmo criado pelos negros de Montevidéu (...). Além de 
tambores variados havia: sopapos – surdo gigante, tocado com a mão, típico do Rio Grande do Sul.” No âmbito
acadêmico, Mário de Souza Maia defendeu tese intitulada O Sopapo e o Cabobu, em 2008. Nesse trabalho o 
autor reafirmou a invisibilidade e o escamoteamento do negro na identidade cultural gaúcha devido, 
primeiramente, ao positivismo, e, mais tarde, à ascensão do tradicionalismo na metade do século 20.

Importante mencionar que, em fins do século 19 e início do século 20, o sopapo garantira espaço nos festejos
 de rua. Em Rio Grande e em Pelotas, o tambor encontrou seu lugar fazendo o papel que hoje é ocupado pelo 
surdo de terceira, responsável pelo “molho”, o “redobre” que conferia uma característica única ao samba 
gaúcho em função do som grave e inconfundível do instrumento. O Sopapo chegou ao desfile de Carnaval em 
Porto Alegre por meio da Academia de Samba Praiana, fundada em 1960. Depois, ocorreria a “carioquização”
do samba gaúcho na década de 1970, acentuando-se na década de 1980, fruto da televisão que divulga para 
todo o país o desfile “oficial” das escolas do Rio. Assim, o sopapo perdeu espaço nas baterias para os 
instrumentos sintéticos, numa tentativa de cópia do modelo carioca.

Em um momento em que ainda não se concretizou a Lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino da história
e da cultura afrobrasileira e africana nas redes de ensino pública e particular, o sopapo e sua trajetória chamam
atenção para a invisibilidade da cultura negra no Rio Grande do Sul. Contribuindo para preencher essa lacuna,
no ano de 2010, foi realizado o documentário O Grande Tambor, num esforço de diferentes instituições
capitaneadas pelo Coletivo Catarse, com apoio do IPHAN. Com isso, o instrumento se faz cada vez mais presente
na música popular do Rio Grande do Sul no século 21, bem como junto a grupos de dança afro, cada vez mais 
revestindo-se como símbolo da resistência negra no Estado.

Sob esse ponto de vista, diversos griôs vêm contribuindo para manter viva a memória do tambor e legá-lo às
novas gerações: Dona Sirlei, Dilermando (também luthier), Mestre Chico, Mestre Paraquedas, Paulo Romeu. 
Há também os instrumentistas que colocaram o tambor em seus sets musicais: Sandro Gravador, Edu Nascimento,
Mimmo Ferreira, Lucas Kinoshita (que também escreveu um trabalho de conclusão de graduação em Música
em 2009 materializando pela primeira vez a escrita musical aplicada ao sopapo), Alessandro Brinco, Paulo Mallet,
Nego Wado, etc. Poderiam ser citados ainda compositores que vêm usando o instrumento nos seus discos e arranjos,
como Kako Xavier, Leandro Maia, Zé Evandro, Marcelo Cougo, Sebastian Jantos, entre outros. Eu também me
incluo nesse time. O grupo Bataclã FC, do qual faço parte, recebeu, em 2011, o selo Cultura Viva do MINC, por 
difundir o sopapo, e, nos cinco discos que gravei de 2002 até hoje, o instrumento sempre se fez presente, não 
enquanto adorno ou alegoria mas com papel de destaque no arranjo das canções.

Assim, nos últimos anos, diferentes segmentos envolvidos com o sopapo vêm discutindo a potencialidade da
recriação de um repertório ancestral – feito, por exemplo, a partir de aludjás de religião executados no 
instrumento, cantos de procissão recolhidos em material etnográfico e musical ligados ao maçambique, ao 
quicumbi (leia o texto na página ao lado) e ainda toques de sopapo aplicados ao candombe (manifestação 
afro-uruguaia da fronteira com o Rio Grande do Sul, com registros históricos que atestam a presença de tal 
manifestação popular na capital do Estado no fim do século 19). Desse modo, resolveu-se expandir a reflexão
e a prática ligadas ao sopapo e, com isso, criou-se o Alabê Ôni (“Nobre Tamboreiro” na língua Iorubá), que
busca vivenciar o sopapo em manifestações da cultura negra e, ao mesmo tempo, contempla o sincretismo da
religiosidade afrocatólica (maçambique e quicumbi), cantos de batuque de nação Ijexá Oyó e toques de 
candombe, tudo isso sob a benção do mestre de cerimônias: o tambor sopapo.

Busca-se assim uma linhagem de permanência e ancestralidade do sopapo ligada aos cantos de religião, não 
uma manifestação do sopapo ligada ao ciclo urbano – desatrelada, assim, do fenômeno do Carnaval carioca e
da música popular contemporânea. Esses diferentes esforços vêm conferindo novo impulso a esse instrumento
que quase desapareceu no fim do século 20. Certo é que o sopapo faz parte de uma linha direta com ancestrais
fundadores daquilo que precisa ser revisto enquanto “gauchidade”, mostrando a presença negra no trabalho 
no Rio Grande do Sul ao longo do período colonial, trazendo, com isso, o reconhecimento da contribuição 
afrodescendente à cultura do Estado.
RICHARD SERRARIA | MÚSICO, COMPOSITOR E MESTRE EM LITERATURA BRASILEIRA UFRGS

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