quarta-feira, 20 de julho de 2011

Mormaço do sopapo: carne de sal, canção e cansaço









O hibridismo me parece a chave central do que ocorre aqui, muito anterior à ideia antropofágica e tropicalista pois a arte criolla criada na América hispano-portuguesa já nasce mestiça. A aquarela de Wendroth desenhada na metade do século XIX mostra no RS uma dança de negros ao som dos tambores de sopapo. Inquietação: a manifestação da África recriada na América, por um lado vista como estereótipo de brasilidade construído modernamente a partir do projeto getulista, e essa diferença de aqui no RS não fazer parte da expressão de cor local criada aproximadamente 100 anos depois de NEGERTANZE.



Abre-se a possibilidade de focar o "calor" que os ritmos e tambores africanos nos emprestam e que em grande parte passam ao largo da "gauchidade" construída a partir da segunda metade do século XX. A Estética do Frio de Vitor Ramil trouxe também a ideia de que uma concepção fria tem muito o que fazer com uma concepção quente.



Não acredito em uma nova linguagem como fruto da fusão mas acho que antes de tudo a expressão criolla do pampa é amálgama, liga, mesclanza. Talvez pelo fato de ser zona de fronteiras móveis no período colonial e por ainda hoje o pampa servir de metáfora de um caminho intermediário entre o Brasil do calor e o sul da América mais gélido em suas planícies impregnadas de solidão. Sim, o frio nos define mas ele é apenas uma parte. O calor quando chega aqui também é muito forte e joga boa parte das pessoas ao litoral, metáfora de deslocamentos e zona de trocas. Portenhos que vão para o litoral uruguayo ou avançam para Santa Catarina, porto alegrenses que vão para o litoral norte, o litoral da costa doce da Lagoa dos Patos em grande afluxo de pessoas, uruguayos que saem de Montevidéo e vão para Rocha; tudo isso serve enquanto imagem elucidativa de deslocamentos e desterritorializações geradas pelo mormaço do verão, gerando necessidade de expansão estética no universo da canção que traz à tona a expressão da mescla enquanto espécie de DNA da região. Nada mais sulino do que um dia ensolarado, com calor excessivo em que a brisa da beira da praia à noite impõe a necessidade da campeira.. Noites de Cabo Polônio, Osso da Baleia em Pinhal ou Farol de Santa Marta. No verão o pampa vira mar e o mar vira pampa. O calor que gera ritmo quando sobe a afinação do sopapo. Fogo na calle Durazno.



No Uruguay e Argentina acho que a representação do pampa tem se renovado sim, assim como no RS. Um pouco no flerte com as linguagens eletrônicas mas sobretudo no entendimento de que a integração é realmente uma realidade em que o ir e vir de cancionistas diminui as distâncias e assim encurta-se a pampa. A brasilidade se mostra no fazer de diversos cancionistas: está lá no modo pausado e leve de cantar a herança de João Gilberto. Está lá no entendimento de que melodia, arranjo e harmonia são indissociáveis do tecido poético já que estamos trilhando os senderos da canção. Ao mesmo tempo a sofisticação harmônica de Piazzola e Jobim convergem e se cruzam algumas vezes, trazendo arcos melódicos refinados à seara da música popular. Os tambores do Uruguay e seu rico imaginário de expressão, morada da poesia e belos frutos da Pachamama canção.



E aí aflora uma segunda inquietação: entender causas históricas e motivos da tentativa de apagamento da contribuição afro descendente na música argentina, os negros enviados às guerras, verdades e lendas no surto de febre amarela na zona portuária de Buenos Aires no fim do século XIX e a transferência das famílias ligadas às oligarquias rurais para as casas de campo mais distantes do centro de Buenos Aires. Imediatamente me vem à mente o sopapo, tambor afro gaúcho, enquanto ícone de um esquecimento deliberado pelo positivismo eurocêntrico do RS e que respinga ainda lá no final da década de 40 do século XX.



Aí retorno à canção do século XXI enquanto lugar em que samba, milonga, candombe, tango, bossa, chamamé, milongón, chacarera, zamba dentre outras coisas convivem em diálogo e pertencimentos múltiplos. O pampa não enquanto diluidor e sim enquanto lugar de convívio da alteridade. Sem fundamentalismos estéticos ou filosóficos e sem o elogio fácil ao ecletismo tão esvaziado na contemporaneidade. Um lugar de contrastes, rico de peculiaridades para muito além dos estereótipos fáceis e algumas vezes caricatos. A metafísica do pampa e a solidão dos ritmos partidos em fatias de esquecimento deliberado. Mormaços de sopapo em horas cheias de carne de sal. Chuva de sangue brotando do céu no canal São Gonçalo, negros cansaços em ventres livres chamando milongas. Una canción saladerísitica o una conventilla canción postmoderna mientrastanto unificación en la diversidad.

Necessário dizer que escrevo a partir da visita da equipe do documentário "A linha fria do Horizonte", que mostrará o pensamento e o trabalho de um grupo de compositores de música popular do sul Saiba mais em http://linhafria.blogspot.com/ r em

2 comentários:

sureño disse...

Richard,

Uma vez li, em um passado remoto, uma reportagem da ZH que falava de casas (lugares) de Candombe em Porto Alegre. Onde se tocava e bailava esse ritmo hj chamado afro-uruguaio, mas que tbm teve sua faceta sul-rio-grandense. Tens alguma referência sobre isto?

abraço e parabéns pela análise.

Richard Serraria disse...

Vou procurar informação sobre isso e logo te aviso. Nunca ouvi falar nada sobre isso. Me instigaste! Vou atrás e te aviso... Lembra de ano de publicação disso? Nome do jornalista? Algum dado mais concreto? aql abç