quarta-feira, 4 de maio de 2011

POESIA E CANÇÃO BRASILEIRA - parte 1 e 2



Minha idéia nesse texto é estabelecer aproximações entre a forma de João Cabral de Melo Neto pensar a poesia, ideário presente nos textos “Poesia e Composição – Inspiração e o trabalho de arte” e ainda “Da função moderna da poesia”, em comparação à forma de expressão de João Gilberto, intérprete símbolo da bossa nova. Começo trazendo uma cronologia de publicação do poeta pernambucano, para situar a discussão na década de 50 do século XX, período em que João Cabral publica os dois textos críticos acima e época que viu florescer a bossa nova na zona sul carioca, ganhando o mundo através do violão com voz de João Gilberto.

Pedra do Sono 1942
Os três mal amados 1943
O engenheiro 1945
Psicologia da Composição 1947
O cão sem plumas 1950
Poesia e Composição 1952
O rio 1954

A breve cronologia acima tem como intento situar a produção de João Cabral de Melo Neto até a década de 50 no século XX, paralelamente refletindo sobre ideias acerca da criação expostas no artigo de 1952, Poesia e Composição. Tais ideias já são bastante claras no início dos anos 50 e sobretudo coerentes com seu projeto literário que viria sedimentar-se posteriormente. Paralelamente à cronologia e ao ideário cabralino, situo ainda o objeto canção, amálgama de poesia e música, expressão significativa no âmbito da cultura brasileira ao longo do século XX e início do século XXI.

No início da década de 40 surge, por exemplo, a canção de exaltação “Aquarela do Brasil” de Ary Barroso e ainda essa década fica marcada pela expressão inicial de Dorival Caymmi, cancionista que solidificaria sua trajetória nas décadas seguintes. O projeto nacionalista de Getúlio Vargas está em pleno curso através da Rádio Nacional, difundindo a ideia de que a brasilidade sedimenta-se sobretudo no samba e em suas variações provenientes da herança negra colonial. Aliás, concernente a isso, é preciso destacar que nas décadas anteriores houve a afirmação dos ideais modernistas paulistas e depois a publicação de Casa Grande & Senzala por Gilberto Freyre em 1933, fatos que contribuíram para essa preocupação com a afirmação da identidade nacional proposta no Estado Novo sedimentando-se na escolha do samba como referência de brasilidade. Nesse sentido o livro de Astréia Soares: Outras Conversas sobre o Brasil: O Nacionalismo na Música Popular, de 2002, é extremamente elucidativo à medida que a autora mostra a transformação do samba em ritmo nacional e como isso contribuiu para a construção da identidade brasileira. Demonstra ainda de que forma a política nacionalista do Governo Vargas e a consolidação do rádio como principal meio de comunicação da época foram fundamentais para que tal façanha tenha sido atingida. Segundo Soares (2002), as imagens do Brasil representadas na Canção Popular Brasileira são infinitas. Por esse motivo, é essencial compreendermos a nossa música como papel estruturante na construção da identidade nacional, ou seja, na construção coletiva do que é “ser brasileiro”. A autora ressalta que a identidade de uma nação é construída por meio de determinados elementos que mesmo sem poder ser definidos com exatidão, alguns se sobressaem. A música, a comida e a irreverência do povo seriam alguns deles. Como exemplo deste pensamento, Soares ressalta a invenção da batucada, que transformaria a gente triste e amargurada em entusiasta do prazer. Segundo a autora, esse ritmo não remete a uma “África perdida”. A batucada, para ela, é considerada um acontecimento tipicamente brasileiro. Mesmo que a expressão popular possua diversos panos de fundo, aponta, a imagem de sua alegria é entendida como outro ponto que legitima o traço da identidade brasileira. Alegria, expansividade, festa, transbordamento de sensações e expressões sociais e musicais.

Paralela a essa discussão, lembro que poeta João Cabral é costumeiramente associado à concisão, enquanto autor que evita os excessos. Salienta-se a primeira contradição: como um autor brasileiro, muitas vezes colocado pela crítica literária como um poeta de expressão regional, lida com essa força contrária, aparentemente anti-brasileira, a saber, a negação dos excessos? Cabral reitera ainda que partilha do entendimento de que o criador não deve se deixa raptar por qualquer estado emocional ditado pela inspiração. Eis aí a forma como preza a objetividade. Para tanto emite algumas definições de composição de modo comparativo: enquanto para alguns a composição lírica é o ato de aprisionar a poesia no poema, para outros é o ato de elaborar a poesia em poema. Também põe em oposição a idéia de que a criação é o momento inexplicável de um achado afirmando que tal poeta pouco tem a dizer sobre a composição pois em tal caso os poemas são de iniciativa da poesia que brota e cai mais do que se compõe. Contrapõe a esse modelo o exercício racional de horas enormes de procura: “feita de mil fracassos, de truques que ninguém deve saber, de concessões ao fácil, de soluções insatisfatórias, de aceitação resignada do pouco que se é capaz de conseguir e renúncia ao que se desejou conseguir”.


Retomo Cabral acima para pensar que no mesmo período histórico enfocado, década de 50, se dá a afirmação da Bossa Nova, através do trabalho de João Gilberto e sua batida sincopada ao violão, reproduzindo a batida de um tamborim nas seis cordas de nylon. Ao mesmo tempo que traz a batida característica do samba brasileiro, traz consigo o requinte das harmonias utilizadas pelo Jazz norte americando, marcado por acordes dissonantes em fascinante encadeamento harmônico. A Bossa Nova poderia ser pensada assim como elemento materializador dos ideais antropofágicos quase 40 anos após a Semana de Arte Moderna, ao propor a utilização do samba como base de expressão cancional, agregando a significativa contribuição estrangeira no uso de acordes alterados provenientes do jazz.

Retomando Cabral, em sua apresentação de ideário poético, ele afirma em determinado ponto que a crítica se aproxima da criação enquanto atividade individualista e incompreensiva, relegada à condição de criação de segunda mão, devendo verificar se a composição obedeceu a determinadas normas pois a norma foi estabelecida para assegurar a satisfação da necessidade. O autor pernambucano defende a premissa de que todo autor deve se preocupar com a criação de uma poética pessoal, que seja original e autêntica, sobretudo.

Aqui pode-se pensar no ideário de João Gilberto, criador que prezava a objetividade e a concisão também, fazendo interpretações enxutas com a base no samba e ao mesmo tempo fazendo uso de um canto contido, quase sussurado, evitando excessos e derramamentos românticos muito em voga no período no gênero bolero.

Pensando o lugar do poeta e do cancionista paralelamente, passei a refletir sobre a que tradição poética o autor Cabral se filiaria, onde ele teria elencado autores que pudessem ajudar a esclarecer esse perfil marginal quando pensado sobre o paradigma da lírica brasileira, tão afeita ao romantismo lacrimoso e excessivo muitas vezes. Enfim, uma lírica “inspirada” e “sublime”, diferentemente da lógica poética entrevista nos poemas cabralinos e também na expressão cancional de João Gilberto.

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O artigo segue...


 Bossa Tango de Richard Serraria, exercício miscigenado de concisão em formato de canção
Ouça: http://www.iteia.org.br/audios/avisa-que-o-amor-vai-chegar

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