quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Integração musical no cone sul / Revista Aplauso



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Bem-vinda integração
A distância entre Porto Alegre e Montevidéu beira os 900 quilômetros. Até Buenos Aires são mais 200. Mas, além dessas, há também distâncias musicais que aumentam ou diminuem com o passar dos anos, mudando de acordo com o contexto cultural de cada país. Para quem ata e desata esse mapa melódico – os músicos uruguaios, argentinos e gaúchos –, o momento é de redescoberta e integração. Depois de anos de colaborações pontuais, os próprios artistas estão reforçando suas redes de contato e pegando a estrada. Literalmente.
É o amadurecimento de uma cena pela qual alguns militam há décadas. A diferença é que agora, ao invés de esperar por convites, vários músicos estão efetivamente criando oportunidades de parcerias e shows nos países vizinhos. São insuficientes os festivais esporádicos que reúnem gaúchos, argentinos e uruguaios usufruindo de patrocínio público ou de programas privados de estímulo cultural. Afinal, a intensificação do trânsito entre as três cidades pode multiplicar o público dos artistas, somar referências criativas e inclusive projetar o som deles a mercados longínquos. “As possibilidades são artísticas, mas também se referem à necessidade de conseguir novos públicos e poder tocar ao vivo, algo que se tornou essencial para os artistas, com a redução das vendas de discos”, esmiúça Humphrey Inzillo, jornalista musical e editor da revista Rolling Stone na Argentina.
Na condição de mercados menores, o Uruguai e a Argentina produzem artistas ansiosos por vencer suas fronteiras. Neste contexto, o Rio Grande do Sul tem uma posição-chave. “É onde a transição entre as culturas platina e brasileira ocorre mais naturalmente. Para os artistas daqui, a situação é semelhante. Sofremos grande influência dos países vizinhos e ansiamos por uma nova geografia que nos permita colaborar com eles regularmente”, argumenta Vitor Ramil. Com três discos gravados em Buenos Aires, ele mantém um intercâmbio fluido com profissionais de ambos os países. Na turnê do seu último trabalho, Délibab, ele se debruça sobre uma temática regional ao musicar poemas de João da Cunha Vargas e Luiz Carlos Borges. Enquanto Vitor canta “olhei o pampa deserto e o céu fincado no chão”, o parceiro argentino Carlos Moscardini faz poesia com o violão.
A identificação cultural entre os artistas do sul facilita o relacionamento: “A sensação que eu tenho é a mesma que se tem quando se visita um grupo de primos de longe que não se vê desde a infância e, de súbito, descobre-se que eles são geniais. Falamos a mesma língua (uma espécie amorfa de portunhol) e a verdade é que nos sentimos muito cômodos fazendo canções em parceria, dividindo shows”, afirma o compositor uruguaio Daniel Drexler, que somente este ano desembarcou na capital gaúcha mais de uma vez para divulgar o álbum Micromundo e participar dos espetáculos de amigos. Na opinião de outro uruguaio que gosta daqui, Sebastián Jantos, a familiaridade vem da redescoberta de raízes musicais comuns. “Estamos muito mais perto do que a gente pensa”, resume ele, citando uma relevante influência comum: “A milonga, por exemplo, é um gênero que abrange parte do Rio Grande do Sul e todo o litoral do rio Uruguai, inclusive a margem argentina”.
A riqueza da música brasileira sempre atraiu os ouvidos dos vizinhos. Roberto Carlos lançou discos na Argentina, Toquinho e Vinícius fizeram uma série de shows nos anos 60 por lá e até Mercedes Sosa veio ao Brasil gravar Chico Buarque e Gilberto Gil. Não é por acaso que a sonoridade brasileira se reflete na composição popular dos países vizinhos até hoje. Em território uruguaio, por exemplo, a bossa nova e o samba são duas influências tão presentes quanto os ritmos afro-descendentes (o candombe e a murga), o jazz e o rock. Por outro lado, o Rio Grande do Sul recebeu o tango do Uruguai e da Argentina a partir da primeira metade do século 20, quando o gênero influenciou o trabalho de Lupicínio Rodrigues. Também tem procedência argentina o rock, a partir dos anos 60, e gêneros folclóricos como o chamamé.
As semelhanças entre a cultura, a música e até o clima dos três países já inspiraram algumas tentativas de organizar a movimentação artística entre eles. No livro Estética do Frio, Ramil traça paralelos entre a sua obra, a música feita no sul do Brasil e a paisagem do pampa. Ao lado do uruguaio Jorge Drexler e do argentino Kevin Johansen, o gaúcho é um dos principais promotores desta integração. Drexler inclusive procurou Ramil e sugeriu adotar o “templadismo” – expressão criada junto com o irmão Daniel Drexler– como nome oficial dessa certa música do sul.
Daniel Drexler considera o termo uma ferramenta de agitação cultural. E garante que o “templadismo” funcionou como um catalisador de encontros, debates e intercâmbios que provavelmente teriam acontecido de qualquer jeito, mas em uma escala muito mais longa. “A intenção por trás é ambiciosa: trocar o nosso eixo vital, tomar a realidade em nossas mãos sem esperar que as coisas fluam desde os centros. Deixar de ser eterna periferia e passar a ser o centro de uma realidade nova. O objetivo: não nos sentirmos tão abandonados no sul”, teoriza Drexler. Sob esse guarda-chuva, ele reúne vários artistas da região e estabelece um vínculo entre a vastidão da paisagem platina, a temática das letras e o tom melancólico das canções. Tanto os artistas já citados, assim como Lisandro Aristimuño, Pirisca Grecco, Tomi Lebrero, Marcelo Corsetti e Carlos Casacubierta, hoje em dia mantêm um intercâmbio fluido. “Há pontos de interseção entre os nossos idiomas criativos: a herança da milonga, a linguagem sem estridências, a busca dos meios-termos, a voz sem empostação, a busca antropofágica do encontro entre o global e a raiz regional”, acresenta o músico.
Daniel não se restringe à teoria, longe disso. Com Vitor Ramil, Marcelo Delacroix e a uruguaia Ana Prada, ele tem viajado para mostrar o espetáculo Sin Fronteras. De forma semelhante, o gaúcho Richard Serraria tem se reunido com músicos estrangeiros para ensaiar possibilidades de espetáculos. O nome do seu último disco, Pampa Esquema Novo, é tão apropriado que às vezes é tomado emprestado para falar do triângulo musical Montevidéu–Porto alegre–Buenos Aires.
O mais novo e emblemático projeto da integração chama-se Surdomundo Imposible Orchestra. O grupo nasceu da cabeça de dois agitadores culturais: o compositor gaúcho Arthur de Faria e o produtor argentino Carlos Villalba. Ao longo de dois anos, eles tentaram conciliar as agendas de sete artistas vindos do “Sur Del Mundo”. O primeiro encontro ocorreu em março de 2010 e, alguns ensaios depois, estava formada a impossível banda de compositores vindos de grupos famosos – desde os históricos Los Shakers, de Osvaldo Fatorusso, até a Orquesta Típica Fernandez Fierro, de Martín Sued – ou de carreira solo consolidada, como o uruguaio Martín Buscaglia. O som ainda é completado por Ignacio Varchausky (Argentina), Mauricio Pereira, Caito Marcondes e o próprio Arthur (Brasil). Espere vê-los no 17º Porto Alegre Em Cena, no mês de setembro. “A gente vai tocar as músicas da carreira de cada um, alguns temas instrumentais e clássicos dos três países”, revela Arthur.
A repercussão de associações como essas pode inclusive chamar a atenção em mercados cobiçados, como o europeu. “Em Bruxelas e Barcelona, me apresentei como sendo brasileiro do sul, que utiliza as informações que processa do Brasil com informações que recebemos do Uruguai, da Argentina e mesmo da América Latina. Isso despertou uma curiosidade muito grande”, observa Delacroix, que recentemente voltou de uma turnê pelo velho continente.
Colhendo frutos
A movimentação musical pode estar em momento de aceleração, mas não surgiu de repente. Nos últimos anos, iniciativas esporádicas garantem a manutenção dela. Em 2010, a cena ganhou um forte impulso, quando a prefeitura de Porto Alegre retomou os projetos voltados a integrar a produção cultural gaúcha à argentina e à uruguaia. Em março, um grupo de artistas – gente pesada como Vitor Ramil, Luiz Carlos Borges, Geraldo Flach, Renato Borghetti, Luiz Augusto Fischer, entre outros – foi a Buenos Aires divulgar, principalmente, a música composta deste lado da fronteira.  A iniciativa foi batizada de Expresso Porto Alegre. Do lado de lá, o Ministério da Cultura de Buenos Aires soma outro aliado ao trabalho, o Itaú Cultural, e promove, entre 1o e 11 de julho, o Festival Rumbos – Musicas Del Sur, em Buenos Aires. Trata-se de um ciclo de shows gratuitos programado para mostrar a diversidade das músicas uruguaia, brasileira e argentina. Entre as atrações, destaca-se a estreia mundial da Surdomundo Imposible Orchestra.

Além de iniciativas como o Unimúsica, da UFRGS, ou a programação musical do Santander Cultural, é flagrante o papel dos governos nessa integração. Há anos, o Porto Alegre Em Cena e o Festival de Inverno importam atrações musicais dos países vizinhos. Em 2010, filas imensas esgotaram os ingressos dos dois shows de Jorge Drexler em poucas horas. Os anos 90 foram pontuados por bem-sucedidos projetos de intercâmbio, liderados pelas prefeituras de Porto Alegre, Buenos Aires e Montevidéu. “As ações governamentais foram de grande importância. Até então, as colaborações eram isoladas e esporádicas”, relembra Ramil. Os produtores culturais Carlos Villalba, de Buenos Aires, e Luciano Alabarse, de Porto Alegre, coordenaram muitos desses eventos. “Eu creio na acumulação de trabalho e esforço. Esse trabalho está dando frutos. Também os artistas começam a compreender e precisar de uma aproximação regional e de uma circulação mais eficaz dos produtos artísticos”, analisa Villalba, observando que, embora os partidos políticos tenham mudado, os empreendimentos foram retomados. 
Naquela época, podia-se contar nos dedos os artistas que faziam uma ponte entre Porto Alegre, Montevidéu e Buenos Aires. Kleiton e Kledir e Raul Ellwanger estão entre os primeiros a se aventurar nos países vizinhos, mas a lista também inclui Bebeto Alves, Nelson Coelho de Castro, Os Paralamas do Sucesso, Nenhum de Nós. Mesmo assim, grande parte da música brasileira que cruzava as fronteiras não tinha sotaque gaúcho. Atualmente, se os grandes nomes da Tropicália continuam tendo fãs na Argentina, artistas como Vitor Ramil, Adriana Deffenti – que recentemente se apresentou com Fito Paez – e Arthur de Faria atraem bons públicos. Adriana Calcanhoto só se apresenta com casa lotadíssima em Buenos Aires e sempre em grandes teatros. “Todos começaram em festivais”, reforça Arthur de Faria, “o público argentino é muito curioso e mesmo quando não conhece, vai, ainda mais naqueles shows, que eram de graça”, completa.
Ícones uruguaios de outras gerações, como Eduardo Mateo, Leo Masliah, já puseram os pés aqui. As visitas dos argentinos Mercedes Sosa e Astor Piazzolla também foram marcantes. “Mas a música dos novos artistas está chegando com muito mais facilidade agora”, defende o compositor gaúcho Mário Falcão, lembrando o relativo anonimato de astros uruguaios como Jaime Roos no Brasil e a vinda recente do famoso grupo No Te Va Gustar.
Se no passado as relações entre Brasil, Uruguai e Argentina foram erráticas, atualmente até mesmo o cenário político parece contribuir. As rivalidades históricas herdadas dos tempos coloniais levaram séculos para serem atenuadas. As ditaduras militares, concomitantes nos três países, até se uniram com o objetivo de reprimir oposicionistas, mas com isso só enrijeceram as fronteiras. “Não se construíam ‘pontes’ e os trilhos das ferrovias eram incompatíveis para evitar a travessia da fronteira”, relembra o produtor Villalba.
Após a recuperação da democracia, os três países conseguiram articular a vontade de se unir comercialmente em 1991, quando assinaram o Tratado de Assunção e inauguraram o Mercosul. “Logo apareceu também a ideia do mercosul cultural, e Porto Alegre adquiriu uma importância estratégica e, sobretudo, anímica. Porto Alegre é quem convoca Montevidéu e Buenos Aires, iniciando um caminho de colaboração inédito”, analisa Villalba. A mudança política também é apontada por Daniel Drexler como um fator determinante. “Brasil e Argentina pararam de se olhar com desconfiança. O Brasil está buscando se posicionar como potência mundial e sabe que, para isso, é importante se conectar com os países ibero-americanos. O seu canal de conexão mais fluido passa por Porto Alegre, Montevidéu e Buenos Aires”, arrisca Daniel.
De lá para cá, o tratado comercial cambaleou e hoje encontra-se numa espécie de limbo. Já a integração musical, após duas décadas de idas e vindas, agora parece se consolidar definitivamente. O argentino Villalba acredita que para artistas, veículos de comunicação e público, Porto Alegre é uma referência de qualidade e profundidade artística. “É vista como uma cidade que cresce, e para nós, que organizamos eventos, isso pode se tornar um problema sério. Todos querem ir a Porto Alegre!” O jornalista Inzillo, da Rolling Stone argentina, é mais conservador. Para ele, a imagem de Porto Alegre e seus músicos ainda está sendo desenhada perante o público da capital argentina. “Lamentavelmente, não se pode dizer que a presença de músicos gaúchos seja cotidiana em Buenos Aires. Mas alguns artistas editaram seus discos aqui e vieram promovê-los.” 
Além de entusiasmo, no Uruguai, o contato com Porto Alegre é saudado com certo alívio. “Para alguém que sofreu durante anos o sufoco das fronteiras de um pequeno país com 3 milhões de habitantes, essa abertura de espaço é uma corrente de ar fresco. E eu sinto fortemente que a necessidade é mútua”, desabafa Drexler. Por lá, quase toda a produção é independente e as poucas gravadoras não têm alcance internacional. Na ausência de uma estrutura de distribuição para o músico independente uruguaio, a comercialização de CDs depende dos shows. “A circulação ainda é um imenso problema para a música independente feita em ambos os países”, detalha o compositor Richard Serraria, referindo-se também ao Brasil.
Ao se deslocarem até outra cidade para fazer shows, os músicos formam vantajosas redes de contato. “Estas ocasiões de viajar, de hospedar e ser hospedado, impulsionam a colaboração compositiva e poética, como também o debate – geralmente intenso – dos problemas da criação e da produção musical”, argumenta o compositor argentino Pablo Grinjot. A internet ainda se coloca como um importante catalisador das relações. Sebastián Jantos e Mário Falcão só estão contemplando a possibilidade de gravar um álbum juntos hoje por causa dela. A dupla, que se conheceu pela rede social MySpace, já gravou músicas em Porto Alegre e realizou diversos shows.
A participação em um festival em Cabo Polônio, no Uruguai, rendeu a Serraria convites para tocar em Montevidéu, Buenos Aires e até na Dinamarca. “As pessoas estão ávidas por isso, admiram a música brasileira demais e cada viagem é um ato concreto, da parte de quem vai, para integrar”, afirma Serraria. Ele faz parte do grupo de músicos que deixou de esperar pelas propostas de produtores e passou a criá-las.
   
 

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